quarta-feira, 28 de setembro de 2011

ESSE OBSCURO OBJETO DO DESEJO




Vera Lúcia Rial Gerpe


"Lenta é a experiência de todos os poços profundos:
longamente têm de esperar,
antes de saberem o que caiu em seu fundo."
F. Nietzsche.1

Uma das principais contribuições trazidas pela Psicanálise ao campo dos saberes que constituem as ditas Ciências Humanas foi a possibilidade de questionamento do desejo humano. A partir da teoria e da prática analíticas, o desejo passou a constituir a marca da singularidade em cada sujeito; mais que isso, ao conceber esse sujeito como se estruturando a partir da linguagem, a psicanálise instituiu uma ruptura entre a ordem do humano e a ordem da natureza, de modo que o desejo humano pôde ser concebido como irredutível ao desejo animal.

Os "Três Ensaios sobre a Teoria da Sexualidade"(1905), ao afirmarem a variabilidade do objeto da pulsão, produziram um abismo intransponível entre uma concepção psicanalítica do homem e uma concepção biológica, introduzindo a distinção entre pulsão e instinto. Contrariamente ao objeto da necessidade ou do instinto, objeto pré-determinado que desencadeia uma ação específica, o objeto da pulsão caracteriza-se essencialmente por ser variável, rompendo com os limites e a fixidez do pensamento biologizante.

Entretanto, uma análise mais detalhada da teoria psicanalítica nos coloca frente a alguns desenvolvimentos teóricos que parecem soar contraditórios no que diz respeito a essa não-fixidez relativa ao objeto, tal como nos revela o estatuto assumido pelo objeto no ato incorporativo próprio à melancolia.
No sentido de pontuar esses momentos, tomaremos por base a distinção que Diana Rabinovich estabelece entre três tipos de perda na constituição da sexualidade humana.2 Em primeiro lugar, a perda do objeto enquanto objeto da necessidade, ou seja, a passagem da satisfação da necessidade à realização do desejo; em segundo lugar, a perda do objeto enquanto real, na medida em que se efetua a sua incorporação, inaugurando o auto-erotismo; por fim, a perda do objeto eleito, verdadeiramente Outro, ou seja, a perda do objeto de amor.

A cada uma dessas perdas corresponderia uma noção de objeto: a primeira diria respeito ao objeto do desejo; a segunda, ao objeto da pulsão, e, por último, teríamos o objeto de amor. Mas é somente a partir do momento em que a primeira dessas perdas se efetua que os demais objetos poderão se constituir, na medida em que os objetos de amor e da pulsão se revelam já como substitutos para o objeto perdido do desejo. O luto por esse objeto primordial instaura, pois, uma nova ordem subjetiva.

Quando, na "Interpretação dos Sonhos"(1900), Freud faz corresponder a satisfação da necessidade à realização de uma ação específica, ao passo que a realização do desejo estaria vinculada à identidade perceptiva, podendo se dar pela via da alucinação, o que está em jogo é a própria complementaridade sujeito-objeto no que se refere ao desejo humano. O objeto não deixa de ser necessário, mas admite uma tal variabilidade que pode ser, inclusive, um objeto alucinado. O sujeito não se liberta do objeto, mas torna-se mais livre na medida em que é ele que o constitui enquanto tal; sua existência está condicionada a uma escolha do sujeito, escolha que pode, inclusive, contrariar os modelos de adaptação biológica do homem ao seu ambiente.
Os traços mnêmicos que serão reinvestidos no caminho regressivo para a realização do desejo, buscando reencontrar uma satisfação originária, estabelecem já uma cisão entre o sujeito humano e o mundo biológico.

Pois esse traço não é meramente um erro de interpretação de um sujeito imaturo que carece ainda dos meios para avaliar corretamente a 'realidade', ela é o surgimento de uma nova realidade, tão material quanto outras, que é a realidade psíquica freudiana, cuja legalidade resiste a um critério puramente empírico e utilitarista da subjetividade.3

A aproximação entre o objeto do desejo e o da necessidade encontra um ponto de apoio no objeto de investimento pulsional, particularmente no que diz respeito ao conceito de fixação. O objeto parece retomar seu atributo de necessário, e a linha entre as concepções de pulsão e instinto torna-se mais tênue. Tal aproximação, contudo, tem razão de ser, pois a concepção de objeto de investimento pulsional não pode ser desvinculada do registro corporal, especialmente se tratamos das pulsões parciais buscando satisfação nas zonas erógenas mais variadas. Mas aproximar não é o mesmo que identificar: posto que a concepção de zonas erógenas como regiões do corpo que estariam para além daquelas biologicamente destinadas ao prazer perverte a noção de um organismo biológico, dando lugar a um corpo propriamente psicanalítico.

A escolha do objeto de amor parece, por vezes, pretender o retorno ao reino perdido das necessidades. É preciso investir no outro enquanto aquele que será um complemento narcísico, que possibilitará o retorno à mítica satisfação original. Mas aqui dois empecilhos já se colocam: em primeiro lugar, trata-se de uma escolha, de modo que o objeto está longe de ser necessário – foi eleito dentre um mundo de outros possíveis. Em segundo lugar, esse objeto já é efetivamente Outro, e não deixa de dar mostras dessa alteridade, destruindo gradativamente a ilusão de complementaridade narcísica, o que, via de regra, conduz à busca de novos objetos.

Ora, o objeto incorporado na melancolia resulta também, fora de dúvida, de uma escolha efetuada sobre bases narcísicas. O mesmo golpe na onipotência narcísica tem lugar, a ilusão de complementaridade é abalada – o sujeito, contudo, precisa reconstruí-la a qualquer preço, e neste empreendimento todo valor é dado ao objeto.

Se este é perdido, não é possível reconhecer nele qualquer traço que revele que, de qualquer forma, ele não se adequava a um projeto a priori impossível; o sujeito então se aferra a este objeto como sendo o objeto, único, imprescindível.

Tal grau de investimento narcísico encontra correspondência apenas no estado de paixão, em que o outro adentra o espaço do sujeito de um modo igualmente invasor e totalizante. Mas a paixão parece ser inteiramente função do tempo de duração da ilusão de complementaridade – aos poucos, o objeto perfeito começa a inadequar-se a essa construção imaginária, que não se sustentará, então, por muito tempo, e cuja derrocada final corresponde invariavelmente à raiva em relação a este objeto que, afinal de contas, pôde ser de tal forma indigno de amor.

Na melancolia, ao contrário, o que se busca é a eternização da relação pela via da incorporação do objeto; a ilusão de completude não se desfaz e não é reconstruída, como na paixão, pois aqui ela ocupa o lugar do ideal, ao qual o ego se esforça por seguir. O objeto perdido é também o objeto ideal, ideal de um ego que não pode reconhecer a impossibilidade de fazer dessa escolha a única possível, como se de uma necessidade efetivamente biológica se tratasse.

Neste sentido, a afirmação de Lacan "A fantasia é a sustentação do desejo, não é o objeto que é a sustentação do desejo"4 parece, ela própria, não se sustentar no que diz respeito à metapsicologia da melancolia. Pois, diferentemente da identificação histérica, a incorporação na melancolia não faz da fantasia algo de apaziguador, algo que permita ao sujeito driblar, de alguma forma, o confronto com a castração. O desejo parece circular, efetivamente, em torno do objeto, cuja ausência qualquer produção fantasmática é incapaz de preencher.

A complexa relação identificatória entre o ego e o objeto na melancolia parece encobrir uma questão que não diz respeito apenas à escolha de um objeto de amor, mas à própria instauração do objeto de desejo, dada a dificuldade em aceitar a impossibilidade de retorno a um momento originário de satisfação, ou, em outros termos, de aceitar a Coisa (das Ding) enquanto para sempre perdida. É em torno dessa questão que procuraremos nos centrar, a saber, na impossibilidade de aceitação dessa perda original e estruturante e na conseqüente "falência do significante" 5, para retomar o termo utilizado por J. Kristeva.

ENTRE O OBJETO E A COISA

A noção de das Ding é retirada da Filosofia e introduzida na Psicanálise através do "Projeto para uma Psicologia Científica", de 1895. Nesse texto, ela é utilizada para dar ênfase à qualidade mítica de um momento primeiro de satisfação, para sempre irrecuperável. Os signos da alucinação permitiriam apenas re-conhecer o objeto original, posto que este jamais será dado a conhecer efetivamente.

Essa noção permeia também toda a "Interpretação dos Sonhos"(1900), em que Freud procura descrever essa primeira experiência de satisfação e a tentativa de retorno a ela pelo movimento de regressão do estímulo no sonho e na alucinação. A noção de temporalidade revela-se fundamental nesse momento da metapsicologia freudiana, posto que a regressão de que se trata aqui diz respeito essencialmente ao retorno a uma experiência anterior de satisfação, muito mais que a um mero retorno espacial de um estímulo que encontra a via à motilidade barrada, como no caso do sonho.

É Lacan, entretanto, que concederá maior relevo a esta noção, situando-a por exclusão, ou seja, como aquilo sobre o qual não há representação possível.
O Ding como estranho e podendo mesmo ser hostil num dado momento, em todo caso como o primeiro exterior, é em torno do que se orienta todo o encaminhamento do sujeito.6

Ainda que não seja representável, das Ding é aquilo em torno de que se constituirão todas as representações. É nessa irrepresentabilidade de das Ding, ou na morte da Coisa, que reside a possibilidade de representar, no sentido de tornar novamente presente algo que foi irremediavelmente perdido. Isto porque não se pode pensar, em termos psicanalíticos, em uma representação atrelada ao referente. Seria como pensar uma pulsão indissociável do objeto. Sem essa perda original, o que teríamos seriam apenas signos, e não significantes. Aceder à palavra implica, pois, na perda de um passado de completude imaginária, condição sine qua non do desejo humano. Em nosso universo de representações, são os objetos que figuram como substitutos da Coisa perdida, e que mantêm com ela uma distância insuperável, a que separa a ordem simbólica da ordem do real. Da experiência primária de satisfação do bebê junto à mãe ao chefe da horda primeva de "Totem e Tabu" (1913), a idéia de absoluto, de um estado de não-desamparo, permeia toda a teoria psicanalítica.

Retomando a questão da identificação, é possível afirmar que as identificações primárias1 na melancolia falham em assegurar o que poderíamos considerar uma passagem da Coisa ao objeto, que resultaria na possibilidade de deslizamento dos objetos do desejo, ainda que sob o signo da repetição. A Coisa foi, de fato, para sempre perdida, mas a passagem às relações objetais não se efetuou - nesse sentido, o que se tem é uma perda não-elaborada a partir da qual instala-se um vazio, que só pode ser recoberto a partir da eleição de um objeto com o qual se manterá uma relação de univocidade. É pelas vias desse objeto que se almeja ter acesso à Coisa, na melancolia, e é nesse sentido que é preciso agarrar-se a essa única garantia de plenitude.

O que está em jogo, portanto, é uma relação particular com a falta, em que o melancólico se vê todo o tempo face à questão da castração, lutando incessantemente numa tentativa infrutífera de preencher, com o objeto eleito, um vazio inaugural. Tudo se passa como se o melancólico pretendesse tomar esse vazio, caracterizado precisamente por sua indeterminação, como uma falta, para a qual haveria um objeto correspondente, passível de preenchê-la. A manutenção dessa espécie de prótese revela-se como única saída face à possibilidade de fragmentação de um ego que não se constituiu a partir de uma história de identificações sucessivas, e sim a partir de uma identificação única, ou melhor, de um ato incorporativo. A diferença que a teorização freudiana permite estabelecer entre identificação e eleição de objeto, no primeiro caso tratando-se de ser semelhante ao objeto, e no segundo de tê-lo propriamente, se evanesce no ato de incorporação, que pretende resolver o impasse de uma libido aprisionada em um objeto cuja inexistência é atestada pela realidade.

Assim, o que o melancólico não pode aceitar é que esse vazio é algo de estrutural, posto que a condição do desejo humano é que ele comporte uma hiância; ou seja, que a Coisa é para sempre perdida, dado que somos seres irremediavelmente presos à linguagem. Como afirma Kristeva:

O depressivo não suporta Eros, ele se prefere com a Coisa até o limite do narcisismo negativo que o conduz a Tanatos. 7
Se não há significação possível para aquilo de que o melancólico se julga privado, entende-se por que seu discurso gira sempre em torno do não-sentido da existência. E se para nós, sujeitos supostos falantes, o sentido é justamente aquilo de que não podemos prescindir, compreende-se por que a idéia de morte bate tantas vezes à porta do melancólico - enquanto encontro com o real, a morte estaria intimamente ligada a esse sentido ausente. Essa ligação pode ser compreendida de dois modos distintos: seja enquanto possibilidade de transpor a ordem simbólica, seja enquanto tentativa extremada de simbolização. Nos dois casos, o apelo à palavra revela-se, de qualquer forma, fracassado – a falência do significante revela-se em toda a sua dimensão.
E isto porque das Ding é, em última instância, algo de inominável, tal como define Lacan:

Das Ding é originalmente o que chamaremos de o fora-do-significado. É em função desse fora-do-significado e de uma relação patética a ele que o sujeito conserva sua distância e constitui-se num mundo de relação, de afeto primário, anterior a todo recalque."8

O vazio que o melancólico tenta, então, pôr em palavras, é do tamanho de sua adesão imaginária à Coisa perdida2; a repetição e a monotonia do discurso não expressam mais que o anseio por esse reencontro. O que o sujeito almeja é uma relação de complementaridade com o objeto; nesse sentido, se dissemos que esse objeto não é da ordem da paixão, poderíamos afirmar que ele seria o verdadeiro objeto de amor, no sentido de uma construção imaginária que vem encobrir uma hiância estrutural, que visa suprir uma relação impossível. Mas tal exigência eleva-o a uma categoria outra que não a de objeto, e torna-se possível afirmar que, em última análise, não haveria objetos para o sujeito melancólico – dito de outra forma, só há objeto enquanto elevado ao lugar e à categoria da Coisa.

NOTAS

Nietzsche, F. Assim Falou Zaratustra, trad. Silva, M., São Paulo: Ed. Círculo do Livro, 1988, p.68 (o grifo é do autor).
2. Rabinovich, D. El Concepto de Objeto en la Teoria Psicanalitica, Col. Los Ensayos, nº I, Ed. Manantial, p.23.
3. ibid p.14, trad. livre. Lacan, J. O Seminário, Livro XI – Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise, Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 1988, p. 175.
5. Kristeva, J. Sol Negro - Depressão e Melancolia, Rio de Janeiro: Rocco, 1989, p.17.
6. Lacan, J. O Seminário, Livro7 – A Ética da Psicanálise, Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 1991, p.69.
7. Kristeva, J. op. cit., p.26.
8. Lacan, J. op. cit., p. 71.

1 Relembramos que por "identificação primária" entendemos a "identificação ao pai (ou aos pais) na pré-história pessoal", tal como expõe Freud em "O Ego e o Id", ESB, vol. XIX, p.45.

2 Não compartilhamos da opinião de J. Kristeva (1989), que vincula a perda da Coisa à perda do objeto materno, pois julgamos que a Coisa está para além de qualquer identificação objetal, dizendo respeito muito mais a uma ordenação específica, a do real, que a um dado objeto de investimento.

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O presente artigo constitui um dos capítulos da dissertação de Mestrado intitulada "Entre a perda do objeto e o advento da palavra: a metapsicologia da melancolia", apresentada à UFRJ em agosto/98.

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Dados sobre a autora:
Vera Lúcia Rial Gerpe - Doutoranda em Teoria Psicanalítica pela UFRJ.
Mestre em Teoria Psicanalítica pela UFRJ, 1998.
Formação de Psicólogo, UFRJ, 1996.

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