segunda-feira, 29 de agosto de 2011

A crônica de um mundo que se partiu (Quando Hollywood encontra Freud)


A crônica de um mundo que se partiu

Por Maria Maia

Um filme sobre a esquizofrenia de nosso tempo. Assim é Clube da Luta. Rápido e nervoso, com diálogos ágeis e eficazes, o filme testemunha a queda de um mundo que se partiu arrastando o sujeito que nele se via preso. Jack, um burocrata yuppie sacrifica sua vida em um escritório onde ganha rios de dinheiro que o levam a construir um mundo vazio. E a vivê-lo. A insônia, que lhe rouba não apenas o sono, mas os sonhos, aparece como um primeiro sintoma, não de sua doença, mas de sua saúde. É um sintoma de que aquilo que é vivo e ainda pulsa nele não suporta mais a falta de sentido de um mundo em que o ser sucumbiu sob o peso do ter.

A temática aqui, e a solução final – um mundo que explode, literalmente – remetem a Zabriskie Point, de Antonioni, que, com soluções estéticas diametralmente opostas fez, em 1969, a crônica do mundo esvaziado pelas coisas. David Fincher, no seu Clube da Luta não usa o tom de calmaria desértica que Antonioni genialmente imprimiu a Zabriskie Point. Ao contrário, situa sua história numa cidade febril e se utiliza de todos os clichês com os quais o cinemão americano inunda e polui as telas mundo afora: violência, ação, espetáculo, catástrofe e astros ( Brad Pitt, está magnífico como a desencantada e violenta metade do anti-herói do filme ). Mas Fincher se apropria destes elementos para fazer uma das mais contundentes críticas, não só do cinemão, mas da própria sociedade americana.

O trabalho, na grande companhia americana, só ajudou Jack a tecer a doença em que se entranha. O transformou em um ser enredado nas malhas do consumo, escravizado pela abundância que a sua ultra desenvolvida e rica sociedade lhe permite, ou melhor, lhe impõe, compulsoriamente. Para obturar o vazio existencial, procura escatologicamente o sentido da vida na dor real do outro em volta. Começa a frequentar círculos de auto-ajuda para pessoas desesperadas, doentes terminais, alcoólatras, drogados, seres muito perto da morte, para os quais o mundo confortável e artificial do consumo já não pode fazer o menor sentido. Em cada um destes lugares nosso herói assume um nome diferente: Cornelius, Ruppert, etc. Ancorado na insuportável dor do outro ele encontra alívio e volta a dormir.

O apartamento de Jack é uma metáfora do universo onde repousam ou enlouquecem os consumidores modernos – anti-seres, crias legítimas do brutal capitalismo, para seu deleite e perpetuação: repleto de aparelhos domésticos de última geração, objetos de decoração superdescolados e outras inutilidades, que a propaganda teima em fazer necessários e vitais para o “incluído” moderno. Templo dos desejos de consumo o apartamento foi montado, peça a peça, com o rito cotidiano de entrega – via trabalho – da alma do jovem yuppie ao grande diabo capitalista. De fato, a companhia em que trabalha é mestra em falcatruas e entrega peças adulteradas aos consumidores, mesmo que isto signifique a morte de outros…. consumidores.

Este mundo “confortável” se rompe violentamente no filme arrastando o nosso herói: a certa altura da vida vazia e preenchida por milhares de objetos inúteis, sua alma atormentada pela insônia se parte em duas. Sucumbe à esquizofrenia. Grande sacada do roteiro. A esquizofrenia é precisamente uma doença mental fruto da perda de contato vital com a realidade. É que a realidade em que ele vive, não oferece mesmo nenhuma chance para o sujeito estabelecer contato vital com nada, a não ser com objetos e coisas. Então no seu caso, paradoxalmente, sua doença é sua saúde. Ele não pode mais seguir concordando em fazer parte de um mundo em que o ser é obrigado a “viver” ilhado em meio às coisas. Em que o ser é primordialmente destituído da condição de ser.

A queda na loucura se dá em pleno vôo, quando conhece mais um daqueles “amigos descartáveis” que as pessoas conhecem nos vôos, mundo globalizado afora. Amizades que estão fadadas a durar o tempo dos vôos. Tão breve quanto a satisfação que as coisas do universo do consumo são capazes de oferecer.

Ao chegar de viagem em casa, Jack assiste atônito a queda de seu mundo. A mesa de design ying e yang e todos os seus “preciosos” objetos, que eram até então o centro de sua vida, estão em chamas. Resolve então ligar para seu novo amigo descartável. Sem saber bem porque, sente que aquela estranha criatura, Tyler Durden, é a sua tábua de salvação.

Tyler é a antítese do burocrata yuppie. Cínico, cético, sarcástico e obsceno, renunciou à racionalidade esquizóide do capitalismo: leva a vida a fazer pequenas sabotagens na vida “confortável” das pessoas: garçon, faz xixi no prato que serve; montador de filmes, coloca pequenas e imperceptíveis ( conscientemente) inserções de cenas pornográficas nos filmes; fabrica sabonete com gordura roubada de uma clínica de lipoaspiração. E por aí vai errando …

O errante induz o burocrata a aceitar ajuda e morar com ele. E o convence a fazer algo muito estranho. Pede que lhe bata. Que lhe bata o mais forte que puder. A afetividade neste mundo esquizóide só se manifesta por seus signos contrários. O único contato humano possível é o soco.

Os socos que trocam, por prazer e querer, instauram entre eles uma forte amizade e estabelecem uma estranha cumplicidade. O burocrata idolatra o errante. Docilmente vai se deixando dominar por ele. Resolvem criar o clube da luta, esquisita sociedade cuja regra número um é não falar do que se passa nela com ninguém. E o que se passa nela é muita luta. Mas luta leal, corpo a corpo, dois a dois, sem objetivo nenhum de vitória. Os perdedores, que a América tanto abomina, talvez façam ali algum sentido. Descobrem que a grandiosa e vitoriosa América está coalhada deles. Servindo em bares, conduzindo ônibus e taxis, fazendo os pequenos e ordinários serviços. E o clube da luta cresce e avança por toda a parte, pregando o caos. Crescendo entre seres desesperançados e revoltados.

Jack agora mora na casa-ruína do errante. Nada funcional, tudo é precário e contrário ao mundo em que vivia antes. Mas dali, daquele novo mundo, que como dizia Freud, “o louco constrói sobre as ruínas do ego que ruiu”, ele pode enfim se encontrar – mesmo que sob o impacto da violência, do choque físico mesmo – com seu duplo. E descobre estupefato que seu duplo é ele próprio. A parte recalcada de si mesmo, seu centro vital.

Mas não há lugar para encontro com a vida nestes tempos de morte.

Quando Hollywood encontra Freud

Por Edílson Saçashima

Sigmund Freud, o pai da psicanálise, teve suas idéias transpostas para as telas por grandes cineastas como Luis Buñuel, Ingmar Bergman, Woody Allen e Stanley Kubrick, só para citar os principais. Curiosamente, Hollywood, a meca do cinema, sempre teve dificuldades em lidar com as idéias freudianas sem cair em reducionismos baratos ou estereótipos. Talvez o único representante hollywoodiano que tenha se saído melhor seja Alfred Hitchcock. Mas David Fincher está disposto a romper essa tradição.

Clube da Luta, seu mais recente filme, toma diversos conceitos psicanalíticos para desenvolver um enredo ligeiro e em ritmo de videoclip. Edward Norton é um executivo de trinta anos que está passando por uma terrível crise de insônia. Para se livrar dela, ele passa a freqüentar uma série de grupos de auto-ajuda, mas sem obter resultados. Sua vida irá mudar quando encontra Tyler Durden (Brad Pitt), um vendedor de sabonete. Ele representa uma válvula de escape para o personagem sem nome interpretado por Norton. O relacionamento entre eles vai se estreitando, principalmente após o aparta-mento de Norton ir pelos ares. Os dois então montam o “Clube da Luta”, nome dado às reuniões noturnas em que homens de todas as idades e classes sociais se digladiam até a exaustão. O clube vai ganhando dimensões gigantescas até se tornar uma organização terrorista.

Talvez aqui esteja a relação alardeada pela crítica entre o filme de David Fincher e Laranja Mecânica, o clássico de Stanley Kubrick. Os dois filmes mostram a explosão da violência como válvula de escape para o recalque provocado pela sociedade. Cada um a seu modo, representaria releituras do ensaio de Freud intitulado O Mal-Estar da Civilização.

No entanto, a comparação pára por aí. Enquanto Kubrick esmiuça essa relação, Clube da Luta apresenta outras idéias freudianas. A principal delas, e que é o segredo do filme, é a idéia do subconsciente. O personagem de Norton é a representação do consciente, do lado racional do ser humano. Repressor, ele é a voz da moral. Já Tyler Durden é o subconsciente, a voz do instinto, sem amarras. Talvez o melhor exemplo dessa distinção esteja na relação dos dois com Marla Singer (Helena Bonham Carter).

Enquanto que o primeiro a trata com frieza médica – como na cena em que Norton procura um caroço nos seios de Marla para constatar câncer de mama -, Tyler é absolutamente passional, tanto que é um verdadeiro garanhão na cama. A própria descrição de Tyler feita por Norton reforça a sua imagem de subconsciente. Tyler é responsável pela montagem de filmes a serem exibidos nos cinemas.

No entanto, ele não faz seu trabalho de forma convencional: entre uma cena e outra de Chapeuzinho Vermelho, ele encaixa fotogramas de genitais masculinos. Essa é uma clara metáfora sobre o subconsciente e seu papel nos sonhos. “Enquanto todos dormem, ele trabalha”, diz o personagem de Norton. Assim, o cinema seria comparável ao sonho e Tyler, ao subconsciente.

Na teoria psicanalítica freudiana, o sonho seria o meio encontrado para o subconsciente se expressar. Além disso, o sexo e suas representações são o pilar fundamental de todas as neuroses e problemas psiquiátricos do ser humano. Esse conceito foi transposto para a tela de cinema nas mãos de David Fincher.

As referências à Freud são inúmeras mas a diretriz principal seguida pelo filme é a dualidade do ser humano, idéia chave para saborear o filme e seu final inusitado.Para quem aprendeu a gostar de Fincher com Seven também não tem do que se queixar. Em sua filmografia modesta (quatro longas de ficção até agora), o cineasta vem desenvolvendo um mesmo tema de forma criativa. Em seus filmes, Fincher lida com o lúdico relacionado a vida e, consequentemente, a morte. Em Alien 3, esse tema estava presente na perseguição entre o alien e os humanos, que tentavam encurralar o monstro nos corredores da estação orbital.

Em Seven, a série de assassinatos pode ser visto como uma atividade lúdica do criminoso. Em Vidas em Jogo, o protagonista encarnado por Michael Douglas é literalmente peça de um jogo. Em todos esses filmes, o que está em jogo é a própria existência dos protagonistas e, consequen-temente, do homem. Essa atividade lúdica também está presente em Clube da Luta e se verifica na forma como o personagem de Norton imagina Tyler Durden e se relaciona com ele.

Se a idéia de jogo da vida é tema recorrente nos filmes de Fincher, os protagonistas de seus filmes são peças decisivos para indicar a vitória ou não da “partida”. Para Fincher, as regras são claras e paradoxais: ganha aquele que perder. Ou seja, em Alien 3, a tenente Ripley (Sigourney Weaver) derrota o alien, que está encubado no ventre dela, porque ela comete suicídio. Em Seven, a morte do assassino representa a vitória dele no jogo que ele próprio montou , enquanto que o personagem de Brad Pitt, que se imaginava isento desse jogo macabro, é responsável pelo triunfo do criminoso ao matá-lo.

Em Vidas em Jogo, o jogo chega ao fim quando Michael Douglas tenta o suicídio e, com isso, ele sai renovado, um novo homem. Já em Clube da Luta…De todos os ângulos, Clube da Luta representa um filme peculiar na atual safra de filmes de Hollywood. Sinal de que nem tudo está perdido lá pelas bandas da Califórnia.

Violência e Imagens do Pai no Cinema Contemporâneo

(com comentário sobre os filmes “Matrix” e “Clube de Luta”)

(Fonte: http://www.intercom.org.br/papers/xxiii-ci/gt01/gt01a5.pdf)

Prof. João Angelo Fantini: Doutorando do Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Semiótica da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo

Professor Assistente da Faculdade de Comunicação e Biblioteconomia da Universidade Federal de Goiás

Resumo
A violência exibida nos meios de comunicação e os seus eventuais efeitos sobre o comportamento das pessoas talvez se torne um dos temas mais debatidos nesta passagem de século, o que pode ter implicações perigosas, entre outras coisas, para a liberdade de criação e principalmente para a exibição das obras. O cinema, como outros produtos culturais, pode talvez nos dar pistas das origens desta violência, enquanto objeto criado por sujeitos produtores e receptores desta mesma cultura, cada dia mais influenciada mutuamente pelos diferentes grupos na sociedade globalizada. A psicanálise, desde a sua origem, volta-se a esses sintomas culturais e pretende também, como outras áreas do saber, dar sua contribuição ao debate.

Neste trabalho pretendo aludir especificamente o que considero um desses sintomas culturais encontrados no cinema, qual seja, a forma como a figura do pai é apresentada e de algumas relações possíveis desta figura com a lei simbólica eviolência apresentada em algumas produções recentes. Palavras-chave: Violência ­ Cinema – Psicanálise

A discussão a respeito da violência que se mostra nos meios de comunicação e dos seus eventuais efeitos é possível que se torne um dos temas mais debatidos nesta passagem de século, o que pode ter implicações perigosas para a liberdade de criação e principalmente na exibição das obras, onde a reprodutividade e o imperativo da mídia de massa não podem mais serdescartados, em parte, como elementos constituintes do processo criativo.

A mudança gradativa especialmente a partir do século XIX na família e na sociedade em relação ao lugar simbólico do pai nos parece um dos elementos importantes em vários aspectos do comportamento humano, entre eles as formas como a agressividade e a violência tem sido apresentadas nas diversos produtos da cultura.

Freud, para Elisabeth Roudinesco, foi talvez o grande teorizador da proibição e da culpa ao defender que quando um comportamento deixa de ser punido com a lei social segue-se um aumento da proibição psíquica e que a proibição internalizada seria o único contrapeso possível para a decadência da antiga autoridade paterna, segundo Roudinesco necessária “para o advento das sociedades modernas” (1998:374).

Para os objetivos deste trabalho nos limitaremos a tentar mostrar alguns elementos que nos parecem indicativos, ao menos de uma leitura psicanalítica, deste processo de mudança, especialmente em relação à exibição da agressividade como violência nos meios de comunicação e de como o cinema pode apresentar esse confronto entre a ausência da lei social e a Nome-do-Pai, no processo dessa proibição internalizada.

De início, no entanto, nos deparamos com um universo midiático onde se encontram produtos distintos, como, por exemplo, uma perfomance transmitida ao vivo onde o corpo é aparentemente torturado ou o cinema de David Cronnenberg, ou ainda programas de auditório na televisão que exploram a miséria humana, etc.

Desse vasto universo nos interessa recortar aquilo onde temos algum tempo de pesquisa (1), os sintomas que poderiam ser detectados sobre o tema da violência em relação ao cinema, partindo das contribuições que a psicanálise pode oferecer neste debate. Outra dificuldade inicial está colocada na própria utilização do termo violência.

Se realizarmos uma enquete veremos obviamente que a designação “violência” nos produtos culturais varia de acordo com a cultura de cada indivíduo e grupo, de modo que onde alguns apontam a estes e outros denunciam o escárnio ou a “banalização” da violência. A psicanálise, no entanto, se propõe a tarefa e ao risco de ir além dos aspectos sociológicos e das diferenças culturais. É preciso, antes de mais nada, assinalar o ponto fundamental que a teoria psicanalítica sustenta desde a sua fundação, de que a agressividade é constitutiva de todo e qualquer sujeito (2).

Embora seja possível afirmar que este conceito se encontra hoje de algum modo já incorporado ao senso comum, ele carrega em si uma subversão capaz de inverter todo e qualquer sentido na discussão sobre a violência, pelo simples fato de que sua aceitação implica que se coloque todo e qualquer sujeito no centro da discussão. Isto não é um detalhe. A implicação fundamental da admissão desta idéia afasta a redução de que se pode atribuir a violência apenas ao outro. Ora, de um ponto de vista ideológico essa perspectiva é demolidora. Implica, por exemplo, que não se pode eleger um grupo especifico ou apenas determinadas condições históricas para explicar o fenômeno.

Mais que isso, e também por isso talvez difícil de ser aceito, aceitar agressividade como constitutiva do humano implica dizer que de um modo ou de outro o problema não tem solução. Neste ponto, para uma grande parte dos cientistas, chega o momento em que a psicanálise deve sumariamente ser jogada no lixo. Entretanto, para aqueles que como nós tomam emprestado da psicanálise os referenciais de leitura do mundo se deve ainda dizer algo em sua defesa.

É conhecido, por quem se dispôs a uma leitura atenta dos escritos especialmente de Freud e Lacan, a postura da psicanálise frente a ciência de origem direta ou derivada do positivismo. Sem entrar no mérito desta discussão que em si mesma daria outro tema, o que nos importa aqui é assinalar para a precisa idéia de que para a teoria psicanalítica não há cura – no sentido positivista – para o sintoma.

Transposto para o tema que nos propusemos a discutir, eqüivale dizer que não haveria “cura” para a violência, ou seja, que não podemos tratar o problema como se houvesse um corpo estranho ao sujeito que devesse ser “consertado”. Assim, as saídas parciais passariam necessariamente por qualquer sujeito que viva em sociedade, através do meio de inserção deste sujeito na sociedade, passando pela administração da agressividade de cada um.

Feita esta digressão e deixadas as inúmeras questões abertas que as afirmações acima implicam, é preciso falar sobre o que a psicanálise pode dizer a respeito da violência apresentada no cinema, objeto a que me propus neste texto.

Nas dimensões e para os objetivos presentes, penso que seria tedioso apresentar descrições teóricas a respeito dos conceitos psicanalíticos mais comuns, assim, pretendo aludir descritivamente apenas aqueles menos habituais. Deste modo, entro diretamente no motivo básico que me move a propor a discussão sobre violência no cinema, qual seja, a idéia de que nos parece que alguns sintomas podem ser detectados a partir da forma como é mostrada (ou oculta) a figura do pai, especialmente na produção cinematográfica desta última década.

Por que a figura do pai e não outra qualquer?

A resposta a essa pergunta está aludida nos primeiros parágrafos deste texto: até que os movimentos nas relações humanos nos apresentem novos rumos, do ponto de vista cultural o pai é o representante simbólico da lei. Essa representação diz respeito a uma das idéias básicas em psicanálise que nos diz que ao pai se deve a função castradora, que provoca a separação na simbiose entre a mãe e a criança, um das passagens fundamentais do que ficaria conhecido em Freud como complexo de Édipo.

Retornando ao Édipo freudiano, Jacques Lacan busca estabelecer as conexões possíveis deste pai com a cultura, especialmente em relação à lei, partindo do pressuposto de que “a linguagem, com sua estrutura preexiste à entrada de cada sujeito (…) (1998:498). Elisabeth Roudinesco resume assim o esforço lacaniano: Lacan mostrou que o Édipo freudiano podia ser pensado como um a passagem da natureza para a cultura.

Segundo essa perspectiva, o pai exerce uma função essencialmente simbólica: ele nomeia, dá seu nome, e, através desse ato, encarna a lei. Por conseguinte, se a sociedade humana, como sublinha Lacan, é dominada pelo primado da linguagem, isso quer dizer que a função paterna não é outra coisa senão o exercício de uma nomeação que permite à criança adquirir sua identidade. (…) o que o levou (Lacan) a interpretar o complexo de Édipo não mais em referência a um modelo de patriarcado ou matriarcado, mas em função de um sistema de parentesco.(1998:542)

Para explicar a identificação no complexo de Édipo, a partir do processo que ocorre na infância entre o pai, a mãe e a criança, Erik Porge descreve as operações do que Lacan veio a denominar posteriormente como “metáfora paterna” (3): “Num primeiro tempo o sujeito se identifica ao falo, objeto do desejo da mãe.

A metáfora paterna “age em si”. Ela marca um lugar simbólico ainda velado. Num segundo tempo o pai intervém como privador da mãe face a criança, pela ligação do ‘reenvio da mãe a uma lei que não é a sua com o fato de que na realidade o objeto de seu desejo é possuído soberanamente por este mesmo outro à lei do qual ela reenvia’ (4).

Notamos aqui a diferença com Freud, que fazia pesar a interdição essencialmente sobre a criança, enquanto que Lacan a faz pesar sobre a mãe. A eficácia deste tempo depende do caso que a mãe faz da palavra do pai. Trata-se então de uma relação não ao pai, mas à palavra do pai (grifo nosso). Por fim, terceiro tempo, “o que o pai prometeu, é necessário que ele o sustente’ (5).

Ele deve dar provas de que tem o falo, de que ele o pode dar a mãe, de que ele é um pai ‘potente’, se não onipotente. O filho poderá se identificar ao pai, e a filha desejá-lo.” (1998:42).

De outro modo, quando essa função não é exercida pelo pai real, o fato impulsionaria a criança na busca de um outro pai simbólico que preenchesse essa função, que se diferenciaria, ainda, de um terceiro – o pai imaginário – aquele que se representa como o Todo-Poderoso, o bom deus garantidor da ordem no mundo o pai assustador, o pai com o qual se está em rivalidade fraterna: “Ali onde o pai real desfalece, há apelo ao pai simbólico, e ali onde desfalece a função do pai simbólico, de garantir a castração, surge o pai imaginário.” (Porge,1998:26).

Lacan sustentava que mesmo representada por uma só pessoa a metáfora paterna concentraria relações imaginarias e reais em maior ou menor grau inadequadas à sua fundamental relação simbólica. Neste jogo de relações aparece o que Lacan chamou, para designar o significante da metáfora paterna, o Nome-do-Pai (6): “É no Nome-do-Pai que devemos reconhecer o suporte da função simbólica que, desde a aurora dos tempos históricos, identifica sua pessoa à figura da lei” (1998:279).É fundamental reforçar aqui que não se trata do pai real, de carne e osso, mas da relação da criança com a palavra do pai. De outro modo eqüivaleria dizer que não se trata somente da autoridade real ou não do pai, mas de como esse pai representa – enquanto fato psíquico – a lei.

Este fato, para Lacan, está determinado pelo modo que a mãe, a partir da seu vínculo de amor e respeito, coloca, ou não, o pai em seu lugar ideal, ou seja, o “lugar que ela reserva ao Nome-do-Pai na promoção da lei” (7) (Lacan,1998:585).

O fato do Nome-do-Pai representar a lei implica mais que o limite entre aquilo que pode e o que não pode ser feito, implica principalmente, a possibilidade ou não da transgressão à lei. Para explicar isso, Jacques-Alain Miller, falando sobre o witz, utiliza o exemplo de um computador que pode apenas dizer o que é certo ou errado – como em um corretor de textos – ao passo que o Nome-do-Pai, ao representar as leis da linguagem é capaz não apenas de dizer o que é certo ou errado, mas ainda de cometer a infração de acolher a exceção do neologismo.

Assim, diz ele, não há witzsem, o Nome-do-Pai, já que o neologismo precisa ser aceito pelo Outro, aquele que mesmo representando a lei deixe-o passar. As implicações clínicas da falta deste representante da lei, Freud mostra no caso da fobia do menino Hans, na busca de um pai simbólico que realizasse a função castradora, e no caso Schreber, onde a foraclusão do significante do Nome-do-Pai desencadeia a psicose.

Para tentar explicitar no cinema os conceitos acima e as relações entre a violência e o lugar reservado ao Nome-do-Pai, buscarei analisar filmes recentes que considero representativos da exposição da violência que atualmente se encontra no cinema. Gostaria de tomar como objeto filmes exibidos durante o último ano, pelo fato de que talvez ainda estejam vívidos na memória daqueles que os viram e em razão de serem eles próprios objetos da discussão sobre a exibição da violência no cinema. Especificamente, gostaria de falar de dois filmes: Matrix (The Matrix: Larry e Andy Wachowski, 1999) e Clube de Luta (Fight Club: David Fincher, 1999).

FILME “MATRIX”

O eterno retorno do mito do salvador Matrix é a história de um hacker – Neo (Keanu Reeves) – que descobre que a realidade é apenas uma simulação criada artificialmente por computadores.

O enredo mostra o personagem tentando descobrir a causa do que o atormenta em sonhos e visões como uma verdade que ele “sabe” mas que permanece inconsciente, estando no meio de uma disputa onde agentes do “mundo simulado” e agentes do “mundo real” travam luta. Nos limites deste trabalho não é possível descrever todo o filme, assim tentarei resumir no enredo os pontos que mais parecem interessar para essa discussão, qual seja, aqueles que se relacionam na perspectiva do lugar do pai, ou do Nome-do-Pai e de como este está relacionado a violência que é mostrada no filme.

O mais importante deles e que de certo modo faz par as idéias lacanianas é o de que o mundo no filme é uma construção da linguagem, construído a partir de um programa de computador. Deste modo os personagens que conhecem a linguagem (no caso, dos computadores) tem poderes quase ilimitados dentro do mundo do simulacro. Do lado do “mundo real” que permanece como uma dimensão paralela, é apresentado ao espectador o líder da “resistência” ao simulacro: Morpheus.

Ele é uma espécie de pai simbólico que aguarda a chegada de um enviado mais sábio que ele próprio e capaz de salvar o “mundo real”. Segundo Morpheus, o que Neo tem na cabeça que tanto o atormenta é uma “farpa” que não o permite viver no mundo do simulacro. Essa farpa, a psicanálise chama objeto “pequeno a”: o objeto causa do desejo que resiste a ser simbolizado e que impede que o circuito do prazer se complete, forçando o sujeito a olhar para a realidade. A “realidade” no filme é um simulacro criado pelo megacomputador Matrix, que para Slavoj Zizek é aquilo que Lacan chamou “grande Outro”,”…a ordem simbólica virtual, a rede que estrutura a realidade por nós” (2000:01).

Nas palavras do personagem Morpheus:

Morpheus: “Matrix está em todos lugares, estamos ao redor de nós, aqui até mesmo neste quarto. (…) É o mundo que foi puxado em cima de seus olhos para o encobrir da verdade.

Neo: Que verdade?

Morpheus: Que você é um escravo, Neo. Que você, como todo o mundo outro, nasceu em escravidão… manteve dentro de uma prisão que você não sentir cheiro, gosto ou toque. Uma prisão de sua mente”

É desta prisão, onde os corpos funcionam como biobaterias para Matrix construir a realidade virtual que Morpheus pretende libertar os humanos. Uma das cenas fundamentais do filme acontece quando Morpheus leva Neo a uma vidente para que esta confirme ser Neo o enviado que vai liderar a resistência do “mundo real”. A mulher sugere a Neo que Morpheus não entende as coisas e que não há enviado a ser esperado, enfim, que Morpheus apesar de toda a sua inteligência está se autoenganando.

Mas o que ela realmente quer dizer com isso só se sabe ao final do filme quando Neo, colocado em uma situação de vida ou morte “vê”, como numa iluminação mística, o mundo como um conjunto de linhas de linguagem.

Então o espectador entende, junto com Morpheus, que não há alguém que seja Deus, mas apenas pais simbólicos, representantes da lei da linguagem que forma o mundo que conhecemos: somos apenas significantes para outros significantes, do qual o significante primeiro, o Um, o traço unário da diferença absoluta, Deus ou o pai da linguagem não nos é acessível. Ao enunciar este fato o filme relembra que ser pai é uma função que nomeia, mas que antes é nomeada pois não existe a priori.

Slavoj Zizek nos diz a esse respeito que este pai primordial não é o pai da força bruta como se tornou comum na leitura antropológica de Freud em Totem e Tabu, mas o pai que sabe.(1992:159)

Assim, no instante em que Neo ascende ao saber de que o mundo é uma construção da linguagem, ele passa a se deslocar fisicamente, aparecer e desaparecer, ter força descomunal, porque domina a linguagem a ponto de atravessá-la. Por outro lado, Matrix funciona, de certo modo, como a eterna repetição da fábula do redentor, filho de Deus, com poder de nos livrar de toda a violência do mundo.

Como resume Raimar Zons, após o fim do tempo histórico é o programador Anderson, o outro filho, que como neófito e sob seu nome de hacker Neo obtém a garantia do deus do sono Morpheus de que sua vida consciente não é vida, mas sim um programa, enquanto seu corpo imobilizado serve de biobateria e fonte de energia às novas máquinas pensadoras.

Esse despertar não só levará à anamnese anagramática do hacker Neo de que ele mesmo é esperado messianicamente ­ “The One”, mas também ao literal 2º nascimento do neófito a partir do muco de sua biomassa.

O espírito autoconfiante, no entanto, só entra no corpo estéril para armá-lo e transformá-lo espiritualmente. Assim, o lutador da resistência volta ao interior da Matrix como “não-homem” e como salvador, desdenhando maravilhosamente suas leis físicas.(2000:03)

Do ponto de vista da relação violência/Nome-do-Pai, Matrix parece reafirmar o lugar do pai simbólico como intermediário e portador da lei, o que assegura de certo modo a repetição do Nome-do-Pai, mas também emula o enredo comum às religiões. Estruturalmente, o lugar do pai, o lugar da lei, aparece similarmente na história da maioria das religiões, onde um mundo de desordem, violência, mentiras etc. vai ser combatido por alguém superior que conduzirá os explorados, humilhados, etc. ao “verdadeiro” mundo, na terra ou em qualquer outro lugar, onde as relações serão “reais”.

Para aqueles que assistem ao filme há ainda uma última cena em que o “mundo real” é apresentado não como o melhor dos mundos, mas um mundo caótico, onde estranhos animais gigantes perseguem os resistentes, como um Real dentro do “mundo real” que também resiste à simbolização.

Assim, a “liberdade” proposta no filme deixa, como lembra Zizek, uma mensagem obscura: se Neo é capaz de desafiar as leis da física – voando, por exemplo ­ é apenas porque continua a existir dentro da realidade virtual, sustentado por Matrix (2000:03).

Ou seja, enquanto “salvador” o que Neo promove é a mudança das regras da prisão mental, já que fora da realidade virtual só resta a terra arrasada. Matrix, enfim, parece deixar muito mais elementos para análise sobre as diferenças entre “real” e simulacro, talvez até mesmo do que seus realizadores desejassem.

FILME “CLUBE DE LUTA”

A derrisão paterna na sociedade permissiva em Clube de Luta o que vemos é uma situação bastante distinta daquela apresentada em Matrix. Se neste último, é em torno da busca do pai redentor que se desenvolve a trama, em Clube, o que assistimos é a derrisão da função paterna levada as últimas conseqüências.

O filme é um retrato interessante das formas de vínculo afetivo, de laço social possíveis numa sociedade permissiva. Em um mundo onde o sujeito volta a atenção às suas próprias experiências, em detrimento “do código ou ordem simbólica de ficções aceitas para nos orientarem nosso comportamento social” (Zizek,1999:5), o personagem Tyler (Brad Pitt), inicia o que se torna um Clube secreto, onde homens vão para lutar uns com os outros.

O que na aparência é um reflexo da ausência da lei, revela-se um grupo com regras rígidas, onde o próprio exercício do controle termina por gerar uma fonte de satisfação da libido . Os personagens progressivamente vão rompendo vínculos sociais ao tempo em que tornam sua atividade de “membros do clube” seu único vínculo. Durante a história, o que aparentemente começa com uma forma de transgressão, toma a forma de uma ditadura do superego, onde Tyler comanda o imperativo superegóico: goze ! – você deve porque pode!

De uma perspectiva ideológica, Clube de luta é um pequeno retrato de como a destruição de tudo que é velho em busca do novo pode acabar no fascismo. O clube estende suas ações à sociedade, através de atos de vandalismo e destruição, que parecem ter como objetivo somente a desarticulação social de uma sociedade calcada apenas nos valores do consumo e que é apresentada como desprovida de valores morais. O que se revela no desenvolvimento da trama é no entanto a ânsia de poder do próprio Tyler: os membros podem fazer qualquer coisa, desde que sigam o mestre. Neste sentido o filme relembra o velho modelo das ideologias totalitárias, historicamente sempre mascaradas sob o manto do “novo”. O que começa como um movimento de moralização dos costumes e na busca dos mais altos valores espirituais resulta num corporativismo de um grupo ou de uma sociedade, que alude para si os mais altos ideais e impinge o mal a quem não pertence a ela.

O que há, no entanto, de mais surpreendente está guardado para o final: Tyler e o co-fundador do clube, um personagem que é apresentado como tendo uma vida “socialmente correta” e que aparentemente se deixara seduzir pelo selvagem Tyler, revelam ser a mesma pessoa. A revelação da psicose do personagem funciona como um sentido que retorna re-significando toda a história. O que temos então estabelecido é o que Lacan chama a foraclusão do Nome-do-Pai, revelado na fala de Tyler para com seu “outro”:

“- Nós fomos abandonados pelos nossos pais e eles eram a imagem de Deus. Já pensou o que é Deus não gostar de você?”

“Sendo foracluído, o significante do Nome-do-Pai “retorna no real (ou seja, não simbolizado) sob a forma de um delírio contra Deus, encarnação de todas as imagens malditas da paternidade.”(Roudinesco, 1998: 542). O jogo de Tyler entre a negação de qualquer laço social, de qualquer código estabelecido, enfim, a negação do “grande Outro” e sua posterior psicose pode ser melhor entendida talvez através dos exemplos de Zizek: “Primeiramente, o “grande Outro” aparece como o agente oculto que faz as coisas acontecerem por detrás do palco: a divina providência na ideologia do cristianismo, a ‘invisível mão do mercado’ na economia atual, a ‘lógica objetivada história’ do marxismo-leninismo, a ‘conspiração judaica’ no nazismo, etc.

Em resumo, a distância entre o que nos queríamos conseguir e o efetivo resultado da nossa atividade, o excesso que resulta das intenções subjetivas é incorporado em outro agente, numa espécie de meta sujeito ( Deus, Razão, História, Judeus). Esta referencia ao grande Outro é naturalmente por si mesma ambivalente. Ela pode funcionar como um poderoso tranqüilizante (a confidência religiosa a Deus, a convicção de Stalin de que ele era um instrumento da necessidade histórica) ou como um terrível agente paranóico(como no caso da ideologia nazista que reconhecia por detrás da crise econômica, da humilhação nacional, da degeneração moral, etc, a mesma mão oculta dos judeus).” (1992:39)

Excluído da comunidade, da ordem simbólica, ou seja, simbolicamente morto, o personagem cindido realiza um suicídio onde tenta matar este unheimlich, o recalcado que volta paranoicamente como “estranho”.

Zizek argumenta que se existe um pré-simbólico – o grande Outro – quando nascemos, então o “contrato social”, estruturalmente, é uma escolha forçada: o que mantém a liberdade do sujeito de escolha é precisamente o fato dele escolher o contrato social – se o sujeito “escolhe” ser o “outro” da comunidade ele perde a liberdade, o que em termos clínicos é a psicose. A escolha fora do contrato social implica na oposição impossível ao Nome-do-Pai, o que implica no oposto à identificação simbólica que assegura o lugar do sujeito no espaço intersubjetivo.

A “escolha” da psicose eqüivale dizer que o sujeito se recusa a ceder em seu desejo, o que significa recusar-se “a trocar gozo pelo Nome-do-Pai.” (Zizek,1992:77). A “escolha” do personagem Tyler parece ser exatamente esta: ao perder qualquer espécie de laço social (emprego, relações afetivas, residência, etc) o personagem progressivamente vai sendo levando a esta “escolha impossível”, longe de qualquer identificação simbólica e cada vez mais perto da psicose.

Neste sentido, Tyler eptomiza aqui as discussões atuais da clínica psicanalítica sobre uma violência que está marcada pela ausência da eficácia simbólica, ou seja, uma violência que resulta em parte não apenas do declínio da figura do pai, mas mais ainda do declínio da própria eficácia simbólica da metáfora do Nome-do-Pai que não opera o corte simbólico necessário.

Ou seja, o personagem parece incorporar aquela violência que resulta da agressividade constitutiva do sujeito e que não encontra lei simbólica que faça corte ao narcisismo, fazendo com que esse indivíduo, voltado apenas para si, apresente não os sintomas neuróticos descritos por Freud – um mal estar resultante da renúncia necessária a construção da civilização (respeito ao ideais, sentimento de culpa) – mas sintomas relativos ao superego lacaniano que já previa o quadro social atual (homogeneização, desintegração do conceito de experiência, desaparição da memória, declínio da imago paterna, aumento do racismo, etc.) e que são da ordem do imperativo do gozo, onde o desejo não satisfeito freudiano dá lugar ao excesso que se manifesta na sintomatologia moderna da drogadição, da bulimía, da anorexia, do consumo a qualquer custo e em última instância, da psicose.

A leitura do personagem no nosso entender, entretanto, ultrapassa em muito as questões psíquicas inscrevendo o filme na discussão contemporânea sobre o pós-moderno. Falando sobre “O superego pós-moderno”, Zizek discute como a permissividade na sociedade pode dar origem a uma transgressão de outra natureza: “A ordem pública deixa de ser mantida pela hierarquia e regulamentação rígida, deixando portanto, de ser subvertida por atos de transgressão libertadora. Em lugar disso, temos relações sociais entre indivíduos livres e iguais, suplementadas por um ‘vinculo apaixonado’ com uma forma extrema de submissão que atua como o ’segredo sujo’, a fonte transgressiva de satisfação da libido. Numa sociedade permissiva, a relação rainha/escrava (citando como exemplo alguns tipos de casais lésbicos), autoritária e rigidamente codificada, se torna transgressiva. Esse paradoxo ou inversão é o próprio tema da psicanálise: a psicanálise (atual) não lida com o pai autoritário que proíbe o gozo, mas com o pai obsceno que o impõe como obrigação e, com isso, torna você frígido ou impotente.(…) (como) Um pai (que) trabalha duro para organizar o passeio dominical que precisa ser adiado repetidas vezes. Quando o passeio finalmente se concretiza, ele já está farto da idéia e grita com seus filhos: ‘Agora é bom que vocês curtam!’” (1999:8)

Deste modo, a discussão pós-moderna sobre uma suposta reflexividade (8) na constituição da identidade do “sujeito pós-moderno” esbarra – de uma perspectiva psicanalítica – no exercício da própria atividade de regulamentação social, na medida em que passa a ser investida de libido e transforma-se, assim, em fonte de satisfação: “Nossa sociedade hedonista e permissiva, na realidade é saturada de normas e regulamentos que visam a promover o nosso bem-estar (restrições ao cigarro e ao comer, regras contra o assedio sexual)” (Zizek,1999:5).

Esta parece ser uma das discussões que um filme como Clube de Luta pode estimular ao discutir as aparências entre um dever que numa sociedade liberal e democrática deve se tornar um “prazer” e um prazer que tende cada dia mais a se transformar numa obrigação que torna “os sujeitos culpados quando não são felizes” (idem).

Como foi dito no início, o objetivo deste trabalho não é promover qualquer espécie de defesa do patriarcado ou de retorno a eficácia da metáfora do Nome-do-Pai . Trata-se somente da tentativa de ler alguns sinais, a partir de um modo dado pela psicanálise de olhar o mundo e assinalar que alguma coisa muito importante parece estar mudando.

Como foi dito, se alguém “representa” o Nome-do-Pai, ele é mais do que alguém que diz o que é certo ou errado: ele é aquele que pode aceitar e autenticar a transgressão da norma. Não podemos inferir os resultados possíveis de uma mudança desse lugar e de sua função, mas talvez seja possível pensar que durante muito tempo teremos cada vez mais que lidar com sujeitos cuja relação, a partir da negação das relações com o simbólico (heranças culturais de qualquer espécie) se estreitam na relação com o imaginário.

O caso (9) que ganhou notoriedade quando um estudante universitário atirou em espectadores dentro de um cinema que exibia Clube de Luta parece ser apenas a parte mais visível da impossibilidade de transgressão no campo do simbólico. O cinema, como outros objetos da cultura, pode nos mostrar os rumos que os movimentos dos sujeitos nas sociedades podem estar tomando, enquanto objetos construídos por sujeitos que também são “objetos” da cultura. Neste sentido, acreditamos ser uma questão delicada nas análises a separação entre obras ditas “sérias” e outras de “entretenimento”, como se umas guardassem a verdade da reflexão e outras apenas a pilhéria sem conseqüências. Se há algo que a psicanálise nos ensinou de novo é precisamente que a revelação do inconsciente não se faz por obra da vontade, mas antes por descuido do sujeito.

No chiste, no sonhos, nos lapsos de linguagem, dizia Freud, é que se encontra o sujeito, mais talvez que nos discursos articulados, quando acreditamos saber o que falamos.

NOTAS

Pulp Fiction: Violência e Ironia no cinema dos anos 90. Dissertação. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Semiótica, 1999.
Lacan explica assim, resumidamente, o processo da agressividade: na criança, o movimento de identificação com o outro na constituição do “eu”, onde o indivíduo se fixa numa imagem que o aliena de si mesmo, resulta em uma relação erótica com o outro e o despertar de seu desejo pelo objeto de desejo do outro. Desta concorrência agressiva, nasce o “eu”, o “outro” e o “objeto”. “Durante esse período, registram-se as reações emocionais e testemunhos articulados de um transitivismo normal. A criança que bate diz que bateram nela, a que vê cair, chora. Do mesmo modo, é numa identificação com o outro que ela vive toda a gama das reações de imponência e ostentação, cuja ambivalência estrutural suas condutas revelam com evidência, escravo identificado com o déspota, ator com o espectador, seduzido com o sedutor” (1998:116).
Lacan denominou inicialmente essa função como “função do pai”, depois como “função do pai simbólico” e mais tarde “metáfora paterna”.
Porge citando Jacques Lacan in As formações do inconsciente, 22 de Janeiro de 1958, inédito.
Idem.
Lacan argumenta que em qualquer coletividade humana a “atribuição da procriação ao pai só pode ser efeito de um significante puro, de um reconhecimento, não pelo pai real, mas daquilo que a religião nos ensinou a invocar como o Nome-do-Pai.”(1998:562) Durante sua obra utiliza simultaneamente o Nome-do-Pai ao mesmo tempo em que utiliza os elementos pai real, pai simbólico e pai imaginário. O Nome-do-Pai funciona, diz Porge, como uma articulação do real, simbólico e imaginário que se distingue dos três elementos ao mesmo tempo que se articula como quarto elemento nodulado borromeanamente. Dito de outro modo, o Nome-do-Pai funciona como operador dos três nomes do pai.(1998:160)
Em 1960, no seminário Subversão do sujeito e dialética do desejo, Lacan diz , quase como desabafo, uma questão premente em nossos dias: “Será porventura preciso que se nos alie a prática, que em algum momento talvez adquira força de uso, de inseminar artificialmente mulheres, desrespeitada a proibição fálica, com o esperma de grandes homens, para que extraiam de nós um veredicto sobre a função Paterna? (1998:827)
Zizek resume assim a teoria da Sociedade de Risco formulada por autores como Anthony Giddens, Ulrich Beck e outros: “segundo essa teoria nossa vida não é vivida em submissão à natureza ou à tradição; não existe código ou ordem simbólica de ficções aceitas (o que Lacan chama de ‘o Grande Outro’) para nos orientar no comportamento social. Todos nossos impulsos, desde nossa orientação sexual até o sentimento de fazer parte de determinada etnia, são vividos, cada vez mais, como questões sujeitas a nossa própria opção.” (1999:01)
Acontecido no dia 03 de Novembro do ano passado, no shopping Morumbi em São Paulo.
Bibliografia

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________ (1929) “O mal-estar da civilização”. Obras completas. Rio de Janeiro, Imago, 1988, vol.XXI.

LACAN, J. (1973) Mais, ainda. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, ed., 1985.
________ (1970) O avesso da psicanálise. Rio de Janeiro. Jorge Zahar ed., 1992.

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ZONS, R. A Ética em Matrix. Simpósio Imagem e Violência. Online Internet. 05/04/2000.Disponível em http://www.sescsp.com.br.
Filmes Citados: Matrix (The Matrix). EUA, 1999. Dir: Larry e Andy Wachowski. Com: Keanu Reeves, Laurence Fishburne e Carrie-Anne Moss. 144 min.

Clube de Luta (Fight Club). EUA, 1999. Dir: David Fincher. com: Brad Pitt, Edward Norton, Helena Bonham Carter, Jared Leto, Meat Loaf Aday. 135 min

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